CABEÇALHO

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

LENDAS DE PRETOS VELHOS

Lendas e Histórias - Pretos-Velhos



Vovó Benta

Todos os outros protetores já haviam desligado de seus médiuns, devido a hora avançada e também porque não haviam mais pessoas para serem atendidas.
Fora uma noite semelhante à tantas outras onde aquele salão enchia-se de pessoas famintas do pão da fé e do conselho amigo dos pretos velhos.
Vovó Benta no entanto, continuava incorporada em seu aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando.
O cambono-chefe veio até ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam encerrado, podendo ela "subir".
- Salve camboninho, nega véia sabe que o terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na portera...
Olhando para a porta, o cabono avistou "aquela senhora" chegando e mesmo sem nada falar à preta velha, seus pensamentos reprimiram aquele tipo de conduta que se repetia.
Quando estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegava escondendo o rosto atrás de um xale. "ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura se prostitui nas outras noites e nessa, vem até aqui se fazer de santa..." pensava ele.
Vovó Benta captou as ondas do pensamento do cambono e somente sorriu, pensando em como a vida é uma caixinha de surpresas.
- Saravá zi fia. Como suncê tem passado?
- Minha mãe, minhas noites tem sido um terror. Os pesadelos não me deixam dormir e durante o dia tenho batido perna atrás de emprego, mas a senhora sabe, a minha fama faz com que todas as portas se fechem...
- Não desanima filha. Se você decidiu que realmente quer mudar sua vida, vai precisar de persistência e fé. Não desista de procurar. Há um lar onde a dor está chegando e vai precisar de alguém de coração grande, com vontade de trabalhar e com paciência. Neste lugar, enquanto a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os erros de um passado que desconhece e que por fugir dele, até hoje padece.
- Eu não quero desistir, mas são muitas portas se fechando na minha cara... Às vezes penso que não vale a pena mudar de vida...
- A escolha é sua, por isso o Grande Pai nos deu o livre arbítrio, porém esta preta velha vai dizer para a filha que sem subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso, é o fel que o próprio Cristo Jesus precisou provar antes de se elevar aos céus.
- Minha mãezinha, ontem mesmo vim até esta casa me oferecer para limpá-la durante o dia, como maneira de começar a fazer a minha caridade, porém me aconselharam que me restringisse a vir nas sessões de caridade, pois não ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos Sagrados Orixás.
- Mais uma vez o livre arbítrio filha. Jesus recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu o seu coração e não se limitou a julgar seus atos. Continua insistindo filha, mostra que a sua intenção é boa, pede uma chance de mostrar o seu trabalho.
Abençoando aquela mulher sofrida, de coração e forças já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos naquele prostíbulo, Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando que estaria protegida e amparada por todos os Orixás. Despediu-se, quando a corrente mediúnica apressada, já cantava o ponto de encerramento.
A Preta Velha limpando as energias de seu aparelho com o galho de Arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que alguns filhos ainda tem do real significado da caridade. Depois de largá-lo, permaneceu ainda ali junto aos outros espíritos que haviam prestado o seu serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento.
Alheios à todo benefício que recebiam dos bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na parede sentindo-se cansados, outros ainda, pensavam no programa de televisão que estavam perdendo, graças "aquela senhora" que sempre atrasava o encerramento dos trabalhos.
A semana corria e os acontecimentos andavam conforme a prescrição de uma força maior à dos homens.
Num entardecer, aquela mulher grávida com fortes dores do parto, tenta chamar seu marido do trabalho, quando a bolsa d'água estoura e inicia-se forte sangramento. Alarmada pelo barulho, a filha adolescente sai do quarto e vendo a mãe no chão desmaiada, sai à rua gritando e chamando socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas que não hesitou em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve tempo de lavar rapidamente suas mãos e pedir à menina que trouxesse toalhas e água quente, e ali mesmo fez o parto.
Não acontecia um acaso, pois ela fora adestrada pela vida em realizar partos caseiros, muitos, antes da hora... Sabia como agir e salvou a criança, mas sentindo que a mãe ofegava, ligou para um hospital chamando socorro.
Quando o marido chegou em casa, assustou-se vendo aquela prostitua dentro de sua casa, com um bebê no colo. Os fatos foram relatados e correndo ao hospital, deparou-se com esposa em estado gravíssimo, vindo a desencarnar em poucas horas. Enlouquecido, agora culpava o parto mal feito, mesmo diante da afirmação médica de que a esposa havia sofrido uma parada cardíaca por problemas de pressão alta não tratada na gravidez.
Saiu do hospital disposto a achar um culpado. Quando, enfurecido entrou no quarto para de lá expulsar a prostituta, assustou-se vendo que ao lado dela estava uma preta velha sorrindo. Esfregou os olhos e olhando novamente viu a mulher lhe entregando a criança e saindo.
Que seria dele agora? Os vizinhos movimentaram-se nos primeiros dias, ajudando aquela família, mas depois de um mês cada um voltou a cuidar de sua vida. Na próxima gira de preto velho, o cambono-chefe ajoelhava-se chorando em frente de Vovó Benta, com um bebê nos braços, o que deveria fazer.
- Zi fio, porque tanta tristeza? Esta criança é uma benção.
-Mas não tem mãe.. - exclamava ele choroso
.- Não tem mãe mas tem uma avó.
- Não minha mãe, as duas avós, tanto materna quanto paterna também já desencarnaram.
- Zi fio aguarde ... aquela que é a avó do "curumim" está chegando.
- O cambono estremeceu ao ver "aquela mulher" novamente ali.
- Avó de meu filho?
- O camboninho esquece que foi ela que o salvou? Se serviu de mãe, poderá servir de avó. Tem idade e experiência para tanto.
- Mas não tem moral!
- Zi fio, essa moral de que fala é um chapéu vistoso que dá imponência quando convém, e que serve para esconder a cara quando a vergonha chega. Larga de tanto orgulho e contrata essa filha que tanto precisa de um trabalho, para cuidar do filho que ela mesmo fez vir ao mundo.
Naquela noite, durante o sono, o cambono foi levado a outras paragens do mundo astral e dos quadros que presenciou, foram trazidos à sua mente física, pela manhã como uma forte vontade, senão necessidade, de chamar "aquela mulher" para ser babá de seu filho. E assim o fez.
Ao pedir seus documentos para o devido registro, surpreendeu-se com seu nome verdadeiro, pois a conhecia por Madame Zulu, seu nome de guerra.
Então ela passou a lhe contar que havia conhecido um rapaz rico que a engravidou, quando ainda muito jovem. Por impedimento das famílias, não puderam ficar juntos. Durante a gravidez toda foi obrigada a se esconder e quando o filho nasceu, sumiram com ele. Sua dor havia sido tão grande que saiu pelo mundo a procura do bebê sem nunca ter logrado êxito, até que desanimada e desacreditada, se jogou naquela casa e lá passou a viver de prazeres ilusórios. Falou de suas decepções, de sua tristeza e da saudade que tinha do filho que mal conhecera.
O coração daquele homem agora disparava porque algo muito forte gritava dentro dele. Perguntou por datas, por nomes, por locais e não havia mais dúvidas: - era ela..."aquela mulher" era sua mãe! Entre soluços jogou-se aos sues pés, contando sua história de abandono e de carência materna no orfanato.
Naquela noite, lá no terreiro, um cambono e uma ex-prostituta, agora mãe e filho, ajoelhados aos pés da preta velha choravam emocionados, apresentando o filho e neto para que fosse abençoado.
- Camboninho entende agora porque a preta velha ficava esperando até altas horas para que a filha chegasse no terreiro? Entende porque se diz que "Deus escreve certo por linhas tortas"? Esse pequeno ser que desfruta agora de vosso amor, tem uma história também, mas seja qual for, prometam ampará-lo e amá-lo, o tanto que vossos corações forem capazes, para que a justiça se cumpra.
Talvez um dia viessem a descobrir que em vida passada, o cambono e sua mãe haviam sido pais inconseqüentes daquele ser que ali renascia e que por causa disso, havia se perdido.
Tudo o que mais abominamos, faz parte de nós. A vida sempre nos coloca de frente à espelhos, que independente das máscaras que usarmos, vão sempre refletir nossa imagem verdadeira.
Preta Velha já foi.. já foi prá Aruanda... Vovó Benta

Fonte: livro Causos de Umbanda - Editora do Conhecimento

Sempre Fica Perfume Nas Mãos Que Oferecem Rosas

A noite se fazia linda...
A lua cheia, tal qual noiva entrando na igreja, espalhava seu véu branco por sobre as Campinas, as pradarias e dava brilho especial aquele jardim florido onde as gérberas e adálias bailavam ao sabor da brisa. Pétalas orvalhadas brilhavam a luz do luar, fazendo do roseiral um manancial de energias que exalavam, enchendo o ar com seu perfume.
Espremendo-se pelas frestas do rancho, o cheiro do jardim entrava e coçava o nariz da negrinha, fazendo-a espirrar...e acordar. Era apenas um pretexto que Preta Rosa usava para se fazer ver, mesmo estando em corpo fluídico. Sorrindo, com seus alvos dentes que contrastavam na pele negra, e exibindo uma rosa atrás da orelha, o espírito amigo soprava na testa da negrinha, fazendo-a dormir novamente, para que nessa brincadeira de esconde-esconde, pudesse tirá-la do corpo físico e novamente juntas, voarem ao sabor do vento em busca de outros tantos espíritos, para que pudessem servir em qualquer paragem, sempre em nome do grande Zambi.
Era rotineiro esse procedimento e Preta Rosa ficava muito feliz em poder contar com a preciosa ajuda da negrinha que no corpo físico era paraplégica, mas que sabia voar quando saía dele. O jardim bem cuidado que ladeava o rancho humilde, auxiliava a descida das boas energias e seguidamente era ali, naquele jardim florido, que a espiritualidade se abastecia das energias florais e curativas de que precisavam nos trabalhos de cura.
Preta Rosa, antes de chamar a negrinha, sempre abastecia sua cesta, com as flores que gostava de espalhar no caminho por onde andava. Flores que existiam além da matéria, naquele manancial sagrado.
A negrinha, quando menina foi duramente castigada pelo feitor, fruto das peraltices naturais da infância, mas que não eram admitidas nas crianças negras. Ferida duramente ao final das costas, paralisou as pernas e nunca mais caminhou. Mas para comer era obrigada a trabalhar, então arrastava-se sob o efeito de dor quase insuportável, para cumprir tarefas que Sinhá lhe ordenava. Passava o dia a esfregar o chão da casa grande e quando a noite chegava, seu corpinho magrela amortecia de cansaço.
Preta Rosa, em encarnação anterior, havia sido sua madrinha e guardava pela negrinha um afeto muito especial. Sabia que a dura pena a que foi submetida nesta vida era, na verdade, um aprendizado ao seu espírito endurecido no orgulho e na teimosia, como sabia também que na próxima encarnação a negrinha viria de pele branca e serviria para manifestá-la junto aos homens da terra. Espíritos afins, uma vivenciando ainda os aprendizados da carne, outra evoluindo no mundo astral, são guerreiras de Zambi e em noites de luar, pelos céus deste Brasil, espalham rosas e perfumes por onde passam, cantarolando os versos que Preta Rosa gosta de fazer.
História contada por Vovó Benta


Pai Guiné


Guilherme estava indo para o centro umbandista que freqüentava há pouco mais de seis meses e onde ocorreria, naquela noite, uma gira de preto-velho em que ele teria a gratificante oportunidade de cambonar mais uma vez a Pai Guiné do Congo.
Guilherme era um jovem universitário que procurava desenvolver as atividades do centro com a maior boa-vontade possível.
Auxiliava àqueles que eram atendidos pelo preto-velho e sempre, após o último atendimento, Pai Guiné solicitava ao jovem que sentasse a sua frente para trocarem alguns “dedos de prosa”. Eram nestes momentos que Guilherme mostrava à entidade o sentimento e a idéia de que ser umbandista é ser sempre um vitorioso, como podemos observar no diálogo que se segue:
— Salve Zambi, menino Guilherme! Como vai suncê?
— Salve Deus, Pai Guiné!!! Melhor do que estou seria impossível!!!
— E, por que, zifio?
— Desde que entrei na umbanda só conheci vitórias: minhas notas melhoraram, parei de farrear e encontrei uma menina incrível pra namorar que é médium da corrente deste terreiro.
— Olha zifio, Nêgo fica feliz com sua alegria no desabrochar de sua descoberta de qual é a real felicidade de ser umbandista.
— Olha meu pai-velho, para mim, ser umbandista é ser vitorioso sempre e, se Deus quiser, eu vou vencer ainda mais nesta vida!!!
— Zifio, de fato, ser umbandista é ser vitorioso sempre, desde que se saiba o que é vitória!
— Como?
— O que é vitória pra suncê, meu filho?
— Para mim vitória é vencer, alcançar aquilo que se quer!!!
— Suncê inté que ta certo, mas como se vai saber se aquilo que suncês quer, é aquilo que vai fazer suncês vencer???
— Não entendi!!!
— A sabedoria meu menino!!! É ela o instrumento com que Deus dotou cada ser humano afim de que ele, ao exercê-la, seja sempre um vitorioso em qualquer situação que enfrente na vida.
— Ainda não consegui entender, Pai Guiné!!! O senhor está meio enigmático hoje!!!
— Num se preocupe não zifio, pois nas forças de zambi no tempo certo suncê há de entender!!! Agora Nêgo deve dizer que tá muito ditoso com o namoro entre suncê e a “cavalinha” Gabrielle!
— Mesmo?
— Sim meu fio, pois ela é uma fia tão formosa que é capaz de fazer os zifios crescer moralmente só pelo fato de estarem juntos dela e aprenderem com seus exemplos práticos de amor, bondade e caridade!!!
— Para mim ela é quase uma santa!!!
— É por que suncê só tá vendo ela, nestes três meses de relacionamento, com os olhos do amor, mas em breve o tempo o fará vê-la como é: imperfeita, mas portadora de virtudes morais e edificantes!!!
— Se o senhor diz, eu acredito, mas será que eu poderia tocar em um outro assunto?
— Fique a vontade zifio!!!”
— É que eu gostaria de uma ajuda para alcançar mais uma vitória através da umbanda!
— Qual ajuda?
— É que eu estou muito interessado em uma vaga de estágio numa grande firma de advocacia!
— Vamos ver né zifio, pois só Zambi Nosso Pai é que pode todas as coisas!!!
Guilherme continuou cambonando a entidade e três semanas após o diálogo em questão podemos vê-lo travar uma nova conversa com Pai Guiné do Congo:
—Puxa vovô, eu estou muito feliz por ter obtido minha vitória!!!
— Conseguiu a vaga zifio?
— Graças a Deus, alcancei minha vitória!!!
— Peça sempre sabedoria a Zambi para que esta vitória não seja uma derrota na sua vida!
— Pode deixar vovô, pode deixar!!!
Um ano após esta conversa, encontraremos Guilherme a ter uma nova conversa com o preto-velho:
— Pai Guiné, continuo vencendo na umbanda, alcancei nova vitória!!!
— Como assim, zifio?
— Comprei um carro usado, mas que está tão bonito e ajeitado que parece novo, agora a vida vai ficar mais fácil com esta minha conquista!
— Zifio, peça sempre sabedoria a Zambi para que esta vitória não seja uma derrota na sua vida!!!
— Pode deixar vovô, pode deixar!!!
Três meses após esta prosa lá estava o jovem guilherme em mais um “bate-papo” com Pai Guiné:
— Vovô, é capaz até de o senhor ficar triste, mas eu consegui vencer de novo por meio da umbanda!!! Terminei com a Gabrielle e estou namorando com uma menina da minha turma na faculdade e que me entende melhor; o nome dela é Valquíria.
— Zifio, peça sempre sabedoria a Zambi para que essa vitória não seja uma derrota na sua vida!!!
— Pode deixar vovô, pode deixar!!!
Quatro meses depois Guilherme, abatido, estava novamente a dialogar com o pai-velho:
— Pai Guiné, tive minha primeira derrota desde que sou umbandista!
— Conta pra Nêgo o que aconteceu, meu menino!!!
— Olha, sem eu dar motivo algum, fui dispensado do meu estágio!!!
— Zifio, peça a Zambi nosso pai que faça você ver a vitória que esta derrota é na sua vida!!!
— Como?
— O umbandista é sempre vitorioso zifio!!! Lembra quando nóis conversou sobre isso?
— Lembro sim vovô! Pode deixar que eu vou fazer isto vovô, pode deixar!!!
Três semanas após, Guilherme está outra vez em frente a Pai Guiné a dizer-lhe:
— Pai Guiné, apesar das minhas rogativas a Deus o meu pai desenvolveu uma grave doença e não tem muitas chances de cura!!!
— E na visão de suncê isto é uma vitória ou uma derrota?
Guilherme pensou profundamente antes de responder a entidade, mas só conseguiu dizer:
— Desculpa Pai Guiné, mas para mim é uma derrota!
— Num precisa se desculpar zifio, Nêgo gostou da sinceridade!!! Mas peça a Zambi nosso pai que faça você ver a vitória que esta derrota é na sua vida!!!
— Eu vou fazer!!! Pode deixar vovô, pode deixar!!!
Cinco meses depois Guilherme está de frente a Pai Guiné para ter com ele aquela que, na opinião do jovem, seria a última conversa que teria com a entidade:
— Vovô, graças a Deus, o meu pai já está praticamente curado, mas é que eu acabo de sofrer a maior derrota da minha vida e vim até aqui comunicar ao senhor que vou pedir desligamento do terreiro hoje!!!
Guilherme chorava muito e o pranto era copioso. Pai guiné estalava os dedos enquanto aguardava as emoções do seu pupilo serenarem. Poucos minutos depois a entidade retomou o diálogo:
— Suncê pode dizer pra Nêgo que derrota foi essa meu fio?
— Para que vovô? Para o senhor dizer que a minha derrota é vitória?
— Se o zifio tá zangado e for pra aliviar a dor do seu coração, suncê ta autorizado a fazer malcriação com Nêgo até ficar aliviado, mas depois que suncê tiver falado tudo; Nêgo vai pedir silêncio para que suncê possa escutar tudo o que ele tem a dizer, tudo bem?
— Desculpe Pai Guiné, o senhor pode falar agora que eu escutarei!!!
— Suncê tem certeza?
— Sim senhor!!!
— Então Nêgo vai conversar com suncê, meu menino!!! O zifio tá zangado por que a “rabo-de-saia” Valquiria, vendo que não tinha mais o que sugar de suncê, terminou o namoro, não é?
Boquiaberto, Guilherme respondeu:
— Sim senhor!
— Suncê num tem mais o carro porque teve que vender para ajudar no tratamento do seu pai, não tem mais dinheiro por que está sem emprego; e sem carro e sem dinheiro ela não te quis mais, não é verdade?
— Sim senhor!
— E isto foi uma derrota ou uma vitória em sua vida?
— Agora com o senhor falando assim deste jeito eu, sinceramente, não sei!!!
— Então vamos começar do inicio, certo???
— Certo!
— Um tempo atrás suncê procurou Nêgo pra dizer que tinha conseguido uma vitória que Nêgo sentia que poderia ser uma derrota em sua vida, lembra???
— A vaga de estágio na firma conceituada de advocacia?
— Exatamente!!! Esta vitória não deveria, mas foi uma derrota na sua vida pelo que o motivou prioritariamente a alcançá-la!!!
— Como?
— Comprar um carro, não era o que suncê mais queria?
— Mas isso é ruim?
— Depende do que motiva prioritariamente uma pessoa a adquirir um carro, o que nos leva a segunda vitória que não deveria, mas foi uma derrota em sua vida!!!
— Como?
— Não foi o desejo ardente de impressionar Valquiria e tê-la apenas para si que o motivou prioritariamente a comprar o carro?
— Sim, mas isto é ruim???
— Zifio, isso levou suncê a terceira vitória que não deveria, mas foi uma derrota em sua vida!
— Como assim?
— O desejo de impressionar e ter para si uma mulher de beleza rara e extasiante foi o que fez você abrir mão do relacionamento com a fia Gabrielle, certo?
Boquiaberto, novamente, Guilherme respondeu:
— Sim senhor!
— Suncê abandonou uma fia que só fazia compartilhar para ficar com outra que só queria tudo pra si, isso foi derrota ou vitória?
— Meu Deus!!! Foi por isso que fui mandado embora do estágio: por estar fazendo tudo errado!!! Por isso eu tive minha primeira derrota!!!
— Menino Guilherme, aquilo que suncê chama de primeira derrota foi, na realidade, sua primeira vitória!
— Mas, por quê?
— Por que você estar desempregado proporcionou-lhe a oportunidade de assistir melhor e por mais tempo ao seu pai na ocasião do adoecimento dele!
— Meu Deus!!! Olhando por este lado eu vejo que o senhor tem razão!!!
— E, quando seu pai adoeceu, aconteceu aquilo que suncê chamou de segunda derrota, mas que foi, na verdade, sua segunda vitória.
— Vitória? A doença do meu pai foi vitória?
— Não, mas proporcionou-lhe uma sensibilização na sua vida que o ajudou a sentir e pensar a vida e o amor de uma forma moralmente mais elevada, ou não é verdade que você quase terminou o relacionamento com a Valquiria por três vezes, devido ao excesso de materialismo por parte dela?
— É verdade vovô, é verdade!!!!
— Suncê foi intuído por seus mentores para terminar o relacionamento com ela, mas como a beleza e o envolvimento carnal foram maiores que o seu bom senso, eis que suncê obteve a sua terceira vitória que foi o término da relação só que por iniciativa dela; e logo agora que suncê tá tão perto de conseguir uma vitória crucial pra sua evolução, suncê pensa em largar a sua fé? Nêgo num entende!!!!
— Vitória? Vitória sobre o que? Sobre o desemprego? Sobre o desamor?
— Não meu menino, nas forças de Zambi, há de ser uma vitória sobre suncê mesmo: sobre suas más tendências, sobre a ilusão da matéria e sobre sua ignorância acerca da beleza do espírito. Vitória não é só conseguir o que se deseja, pois se suncê pedir a Zambi e desenvolver a sabedoria, suncê verá a real vitória em todas as situações de sua vida: até mesmo nas derrotas aparentes, suncê entende meu fio?
— Estou entendendo vovô!!!
— Sem sabedoria vencer é só alcançar aquilo que suncês quer, já com sabedoria vencer é encarar as dificuldades da vida como oportunidades sagradas de Deus para a evolução de suncês, pois se isto for alcançado a vitória é certeira, mesmo que aos olhos do mundo seja a mais flagrante derrota, suncê entende?
— Estou entendendo, sim senhor!!!
— Por isso o verdadeiro umbandista vence sempre: por que pede sempre a Zambi que o faça enxergar todas as situações da vida com a visão espiritual da sabedoria!
— É verdade vovô!!!
— Neste mundo tão materializado e ilusório somente o olhar da sabedoria espiritual pode vislumbrar os caminhos que levam suncês a real vitória que, por sua vez, não é aquela sobre o próximo ou sobre a carne, mas sobre suncês mesmos, suncê entende meu menino?
— Sim senhor!!!
— Suncê ainda quer sair do terreiro pelo que lhe parece uma derrota? Ou quer continuar na sua fé aprendendo, a cada gira, a enxergar os fatos com a visão espiritual através dos “óculos” que vem da sabedoria infinita de Zambi nosso pai?
E com o coração e a mente transformados pela misericórdia de Deus foi que Guilherme respondeu:
— Eu fico com Deus, fico com o senhor, fico com Jesus, fico com os orixás, fico com a Umbanda e tudo com muita felicidade!!!!!
E talvez para trazer um pouquinho mais de paz para o coração de Guilherme, foi que Pai Guiné do Congo lhe disse:
— Vamos aprender a vencer sempre?
— Vamos, mas como?
— Fazendo aquilo que Nêgo explicou pra suncê: pedindo a Zambi nosso pai o desenvolvimento da sabedoria!
— Mas como é que se faz isso?
— Tem um jeito muito simples, que foi ensinado pelo próprio mestre Jesus!
— É uma prece?
— É!
— O senhor me ensina?
— A prece fio já conhece, agora o fio deve começar a fazê-la direcionando-a não mais apenas pela memória, mas pelo pensar e pelo coração. Suncê ta pronto?
— Sim senhor!!!
— Então vamos: feche os olhos, relaxe o corpo, esvazie sua mente, concentre-se nas batidas de seu coração e chame Deus para junto de si conectando-se a Ele através da seguinte prece:

“ Pai nosso que estais no céu,
santificado seja Vosso nome,
venha a nós o vosso reino,
seja feita a Vossa vontade,
assim na terra como nos céus….”

Fonte:
Texto escrito por Pedro Rangel.
http://pedrorangelsa.blogspot.com/2009/02/vitoria.html


Vovó Catarina

Os tambores tocavam o ritmo cadenciado dos Orixás, e nós dançávamos. Dançávamos todos em volta da fogueira improvisada ou à luz de tochas ou velas de cera que fazíamos. A comida era pouca, mas para passar a fome nós dançávamos a dança dos Orixás. E assim, ao som dos tambores de nosso povo, nos divertíamos, para não morrer de tristeza e sofrimento. Eu era chamada de feiticeira. Mas eu não era feiticeira, era curandeira. Entendia de ervas, com as quais fazia remédios para o meu povo, e de parto; eu era a parteira do povo de Angola, que estava errando naquela terra de meu Deus. Até que Sinhazinha me tirou do meu povo. Ela não queria que eu usasse meus conhecimentos para curar os negros, somente os brancos; afinal, negro - dizia ela - tinha que trabalhar e trabalhar até morrer. Depois, era só substituir por outro. Mas Dona Moça não pensava assim. Ela gostava de mim, e eu, dela. Fui jogada num canto, separada dos outros escravos, e todas as noites eu chorava ao saber que meu povo sofria e eu não podia fazer nada para ajudar. De dia eu descascava coco e moía café no pilão. À noite eu cantava sozinha, solitária. E ouvia o cantar triste de meu povo, de longe. Ouvia o lamento dos negros de Angola pedindo a Oxalá a liberdade, que só depois nós entendemos o que era. E os tambores tocavam o seu lamento triste, o seu toque cadenciado, enquanto eu respondia de meu cativeiro com as rezas dos meus Orixás. A liberdade, que era cantada por todos do cativeiro, só mais tarde é que nós a compreendemos. A liberdade era de dentro, e não de fora.
Aqueles eram dias difíceis, e nós aprendemos com os cânticos de Oxóssi e as armas de Ogum o que era se humilhar, sofrer e servir, até que nosso espírito estivesse acostumado tanto ao sofrimento e a servir sem discutir, sem nada obter em troca, que, a um simples sinal de dor ou qualquer necessidade, nós estávamos ali, prontos para servir, preparados para trabalhar. E nosso Pai Oxalá nos ensinou, em meio aos toques dos tambores na senzala ou aos chicotes do capitão, que é mais proveitoso servir e sofrer do que ser servido e provocar a infelicidade dos outros.
Um dia, vítima do desespero de Sinhá, eu fui levada à noite para o tronco, enquanto meus irmãos na senzala cantavam. A cada toque mais forte dos tambores, eu recebia uma chibatada, até que, desfalecendo, fui conduzida nos braços de Oxalá para o reino de Aruanda. Meu corpo, na verdade, estava morto, mas eu estava livre, no meio das estrelas de Aruanda. Em meu espírito não restou nenhum rancor, mas apenas um profundo agradecimento aos meus antigos senhores, por me ensinar, com o suor e o sofrimento, que mais compensa ser bom do que mau; sofrer cumprindo nosso dever do que sorrir na ilusão; trabalhar pelo bem de todos do que servir de tropeço. Eu era agora liberta, e nenhum chicote, nenhuma senzala poderia me prender, porque agora eu poderia ouvir por todo lado o barulho dos tambores de Angola, mas também do Kêtu, de Luanda, de Jêje e de todo lugar. Em meio às estrelas de Aruanda eu rezava. Rezava agradecida ao meu Pai Oxalá.
Fui pra Aruanda, lugar de muita paz! Mas eu retomei. Pedi a meu Pai Oxalá que desse oportunidade pra eu voltar ao Brasil pra poder ajudar a Sinhá, pois ela me ensinou muita coisa com o jeito dela nos tratar. E eu voltei. Agora as coisas pareciam mudadas. Eu não era aquela nega feia e escrava. Era filha de gente grande e bonita, sabia ler e ensinava crianças dos outros. Um dia bateu na minha porta um homem com uma menina enjeitada da mãe. Era muito esquisita, doente e trazia nela o mal da lepra. Tadinha! Não tinha pra onde ir, e o pai desesperado não sabia o que fazer. Adotei a pobre coitada, fui tratando aos poucos e, quando me casei, levei a menina comigo. Cresceu, deu problema, mas eu a amava muito. Até que um dia ela veio a desencarnar em meus braços, de um jeito que fazia dó. Quando eu retomei pra Aruanda, o que vocês chamam de plano espiritual, ela veio me receber com os braços abertos e chorando muito, muito mesmo. Perguntei por que chorava, se nós duas agora estávamos livres do sofrimento da carne, então, ela, transformando-se em minha frente, assumiu a feição de Sinhazinha! Ela era a minha Sinhá do tempo do cativeiro. E nós duas nos abraçamos e choramos juntas. Hoje, trabalhamos nas falanges da Umbanda, com a esperança de passar a nossa experiência pra muitos que ainda se encontram perdidos em suas dificuldades.

Fonte: Tambores de Angola
Robson Pinheiro e
Ângelo Inácio (espírito)


Pai Firmino do Congo
A Verdadeira Valentia Não É Aquela Que Afronta...

- Jacobino feitor marvado, um dia te pego na virada. Um dia te mostro que o teu chicote pode inté ferir lombo de negro, mas, que ele jamais tirará a esperança de liberdade para todos esses irmãos de cor que vivemo nessa senzala. Ah! Jacobino tua hora vai chegá e tu vai ter qui fazer a prestação de conta e aí sim, nós vamo nos acertá.
Esses eram meus pensamentos enquanto mais uma vez toda senzala assistia a mais uma sova dada por Jacobino em um dos negros que fora reclamar os maus tratos vividos e do abuso do Comendador Mendonça em querer aliciar sua filha.
Coitado do negro Ernestino, depois de 50 chibatadas ficaria por mais uns dez dias naquele tronco exposto ao sol e a chuva sem direito a pão e nem a água levando todo dia um banho de sal nas costas para jamais esquecer a sua ousadia. Quem já viu alguém tirar satisfações com o senhor Comendador! Nem a sua própria esposa a Sinhá Iolanda ele ouvia. Da casa grande a sinhá a tudo via e ouvia sem nada poder fazer, pelo ao menos naquele instante.
Depois daquela cena monstruosa, todos os negros foram dispersos e eu,Negro Firmino,saí dali com mais raiva ainda daquele feitor. E a voz de meus pensamentos gritava: - Ah! Feitor marvado, mestiço atrevido, um dia te pego. Pego sim! E aí ocê vai ver que negro também é gente! De repente escutei junto a mim uma voz suave que me perguntou:
- Meu fio,onde suncê acha que essa raiva vai te levar? Prá um caminho bom é qui num é! Frimino, Frimino doma esse teu gênio e toma tento! Se tu te vingar, vais parar no tronco tombém iguarzinho a Ernestino e como vai ficar nosso povo? Olha nossas crianças, Frimino! Elas precisam de suncê e num é lá do tronco que ocê vai fazer alguma coisa por elas, é?
Então eu disse:
- Quem é que tá falando comigo? De onde vem essa voz?
Foi aí que um clarão se fez ao meu lado e eu vi a das Dor, a Maria das Dores, que houvera morrido no tronco. Ela estava ali formosa, mais jovial e com semblante de muita paz.
Perguntei então: - Das Dor, como é que ocê tá aqui falando comigo se ocê morreu? Eu mesmo junto com os outros te enterrei.
- Ora essa Frimino! Ocês enterraram o corpo, porém ocê esqueceu que o Espírito é imortá? Agora posso ir onde eu quiser aqui no Engenho para ajudar nossos irmãos e o que é melhor, Frimino, feitor nenhum me barra. Frimino meu fio, venho te dizer que tire essas idéias do teu camutué, pois todo esse sofrimento tem uma razão de ser. Nós num sofremo à toa não Frimino e no passado num fumo tão bonzinho assim. Lá em Aruanda, colônia espirituar em que se encontram muitos dos nossos, sempre nos é explicado que nada acontece sem a permissão de Zambi e que tudo que passamos nesse torrão chamado Terra está dentro da lei de causa e efeito.
- Mas qui diacho de lei é essa das Dor, que só dá ganho pro Comendador e prá Jacobino?
- É a lei que vem nos convidar ao ressarcimento dos erros de outrora ,e ao invés de ocê ficar aí praguejando contra eles, vai rogar forças a Pai Ogum e Pai Xangô para que Ernestino suporte com coragem e resignação essa hora de dor. Vai lá no riacho, recolhe água da cachoeira, pega umas palmas de babosa, pisa elas e faz uns ungüentos pra colocar nas costas daquele pobre coitado. Faz uma beberagem da casca da aroeira, do caju roxo e da quixabá e dá pro Ernestino, pois ele ta cum muita dor e a ferida pode infeccionar.
- Mas como Ernestino vai poder tomar isso se ninguém pode se aproximar dele?
-Espera Frimino, a providência divina se fará. Um anjo de luz vai te procurar na calada da noite do lado de fora da senzala para ajudar. A verdadeira valentia não é aquela que afronta, mas é aquela que sabe agir na hora certa, sem ir de encontro à lei maior. Vai Frimino, que o tempo corre.
- Mas das Dor,quando vou te ver de novo?
- Sempre qui eu tiver permissão e trabalho no bem a fazer ou suncê acha que o Espírito vive prá brincar? Conto com ocê Frimino. Agora vou prá junto de quem vai lhe ser de valia.
Mesmo sem querer sair de junto de das Dor, fui fazer o que ela me mandou até porque dispois de nossa conversa ela sumiu. Fiquei do lado de fora da senzala pitando meu cachimbo. A noite já ia alta quando de repente ouvi passos se dirigindo para aquele lugar e uma voz a me chamar:
- Firmino, Firmino! Onde está você?
- Eu estou aqui, respondi.- Quase que caí de susto ao ver a sinhá Iolanda ali.
- Vamos Firmino, Ernestino precisa de nós. Fez tudo o que Maria das Dores lhe orientou?
- Fiz, sim! Mas como é que a sinhá sabe que ela me pediu alguma coisa? A senhora também a viu foi?
- Não Firmino, vê eu não a vi! Porém escutei a voz dela falando comigo e dizendo que você precisaria de minha ajuda para salvar o Ernestino. E aqui estou. Vamos ao trabalho!
- Mas sinhá,o Jacobino deixou os capangas dele vigiando o tronco.
- Não se preocupe, quero ver quem vai desacatar D. Iolanda, a esposa do Comendador Mendonça. Nessa hora Firmino vou me valer dessa minha condição, afinal de contas, também sou senhora aqui.
- E o Comendador sinhá?
- Dorme depois de umas boas taças de Vermouth.
- E quando ele souber?
- Isso é assunto meu, não se preocupe. Vista essa capa e quanto a estar comigo você está cumprindo minhas ordens, pois também exerço direitos sobre você.
Naquela hora vi quanto minha sinhá era realmente um anjo de luz e a um anjo ninguém desobedece e esse negro Firmino estava com minha sinhá para o que desse e viesse.
Ao chegar em frente ao tronco, logo fomos percebidos pelos capatazes que vieram ao nosso encontro, não reconhecendo a sinhá Iolanda.
Ao vê-los, ela disse:
- Desamarrem o negro do tronco, pois vim cuidar dele.
- Senhora Iolanda, não podemos fazer isso. Recebemos ordens do Jacobino de não deixar ninguém mexer nesse negro. Além do mais, o senhor Mendonça não vai gostar de nada disso.
- Realmente - respondeu a sinhá. - O senhor meu marido não vai gostar de saber que vocês afrontaram à senhora desse Engenho, ou será que não perceberam que também mando em vocês? Desamarrem o Ernestino agora! E podem se recolher, pois vocês não acham que ele tem forças suficientes para fugir daqui depois de um tratamento desalmado desses que recebeu?
- E quem é esse que está ao seu lado?
- É o negro Firmino que fui buscar na senzala e está aqui cumprindo minhas ordens. O que vocês estão esperando? Já disse, desamarrem o Ernestino!
- Senhora Iolanda, vamos acatar sua ordem, porém saiba que devemos satisfação a Jacobino e ao Comendador. - Façam como quiserem. Quanto ao comendador cuido eu.
- Vamos Firmino segure o Ernestino para mim e traga-o para a senzala. Lá, numa esteira, cuidaremos dele melhor. Senhores, tenham uma boa noite.- Essas foram às palavras finais de D. Iolanda.
A prática do curandeirismo entre nós era muito comum e isso era do conhecimento de minha sinhá, que inclusive já houvera se curado várias vezes com o uso das ervas. O pobre do Ernestino não conseguia nem falar de tanta dor, só gemia. Ao olhar para a Sinhá Iolanda lágrimas lhe caiam na face.
Ao chegarmos na senzala, deitei o negro na esteira de bruços, antes lhe dei a beberagem e só depois a sinhá começou a limpar suas costas. Utilizou a água do riacho que eu havia recolhido e depois colocou os ungüentos de babosa. Velou ao lado do Ernestino o resto da noite e antes do dia raiar, retornou a Casa Grande. Porém ao se despedir de todos nós, pois os outros negros acordaram com nossa chegada, ela pediu ao Ernestino que ele não desafiasse mais o Comendador, pois morto ele não seria de nenhuma valia. Me pediu ainda para cuidar de seus curativos, trocando os ungüentos e que mandaria da Casa Grande a alimentação necessária para reerguimento dele, pois tinha perdido muito sangue.
- Sinhá como vai ser quando o sol raiar? Quando o Comendador souber? Temo pela senhora.
- Não se preocupe Firmino, a cada dia o seu próprio problema. Além do mais, meu pai estará chegando para me visitar nessa manhã e eu duvido que o senhor meu marido tente algo contra mim.

Pai Firmino do Congo
Mensagem recebida
por Mãe Luzia Nascimento


Pai João das Almas

São muitas as lembranças da minha encarnação como escravo em uma fazenda de café no interior paulista. O som da chibata, os gritos dos feitores que saíam à caça dos escravos fugidos, as amas de leite obrigadas a amamentar os filhos da sinhá. Lembranças pungentes de muito sofrimento. Quando a princesa Izabel assinou a Lei Áurea, eu estava velho e muito doente.
A senzala era o único lugar onde o negro conseguia ser livre. Minha história de vida foi muito triste, mas aprendi muito. O sinhô era um homem muito refinado e não me tratava mal, mas a sinhá era uma mulher muito infeliz. Seu coração cheio de fel não sabia amar. Era temida e detestada. Por muito pouco mandava chicotear os escravos da senzala e o sinhô fazia todas suas vontades. Negrinhos eram afastados das suas mães, velhos escravos iam para o tronco e as escravas caseiras tremiam com as ordens da caprichosa sinhá. Eu não me queixava e jamais cultivei o ódio e a vingança. Alguns escravos odiavam os senhores com todas as forças até à morte. No plano espiritual, continuavam a perseguição perturbando os senhores com a força da magia negra e da vingança. Como é bom ser bom! Como é triste ser mau! Quantas lágrimas e sofrimentos os senhores plantaram através de suas atitudes. No entanto, todos caminharemos para a Eterna Felicidade! O caminho mais sublime é o Amor, mas alguns só evoluem através da Dor!
Eu era forte e jovem, mas quando meu grande amor foi vendido, capricho da sinhá, minha saúde nunca mais foi a mesma. Minha vida mudou bastante e o meu consolo eram as rezas. Jamais cultivei a revolta ou a vingança. Os Orixás me davam a paz e o consolo para suportar as provas daquela encarnação.
Pior que a escravidão os grilhões da maldade e do preconceito. Muito pior que nosso sofrimento era o peso dos pecados daqueles que oprimiam seus irmãos de cor.
No dia 13 de maio, a alforria! No entanto, as lembranças marcaram minha vida para sempre. Foi minha encarnação mais proveitosa. Nessa vida de martírios, cultivei a renúncia e a humildade.
Quando desencarnei, meu grande amor estava à minha espera. A linda escrava que eu amei e foi vendida já estava no Plano Espiritual ansiosa pelo meu retorno. Somos todos irmãos! Somos todos iguais!
Muito tempo se passou e agora estou novamente na Terra. Não como espírito encarnado, mas como pai velho trabalhando nos terreiros de Umbanda. Minha vestimenta astral é a de preto velho. Escolhi essa missão para estar mais perto dos meus filhos de fé. Muitos precisam de libertação, da alforria da paz e da fé. Essa é a missão dos pretos velhos! Conselho, resignação, amor e paz! Limpar com a fumaça do cachimbo os miasmas do mal e da doença.
Aceitei essa tarefa sublime por muito amar a Humanidade. Conheci o sofrimento, a humilhação e a pobreza.
Minha mensagem é de libertação! Filho de fé liberte-se dos grilhões do orgulho e do egoísmo. Se você está sofrendo, não desanime! Confie no Pai Oxalá que tudo vê e tudo sabe! Faça sua parte no aprimoramento espiritual e na reformulação das suas atitudes. Liberte-se das vibrações negativas do desânimo, da tristeza e do pessimismo. Ame a Terra! Colabore para que esse Planeta melhore cada vez mais e seja um grande Lar de Amor! Liberte-se do peso da angústia através do Amor! Perdoe seus inimigos, porque Oxalá é o exemplo de Perdão e Misericórdia!
Desejo que Oxalá o ilumine hoje e sempre! Nascemos para vencer e evoluir! Nascemos para conviver com Amor e tolerância! Somos todos irmãos! Nascemos para cumprir apenas uma passagem! A verdadeira vida é a vida espiritual!

Pai João das Almas
(Mensagem psicografada por Sandra)


Pai Francisco de Luanda
Noite na senzala. Os escravos amontoam-se pelo chão arranjando-se como podem. Engrácia entra correndo e vai direto até onde Amundê está e o sacode:
- A sinhazinha está chamando, é urgente! - O escravo é conhecido pelas mezinhas e rezas que aplica a todos seus irmãos e o motivo do chamado é justamente esse. O filho de Sinhá Tereza está muito doente. É apenas uma criança de cinco anos e arde em febre há dois dias sem que os médicos chamados na corte consigam faze-la baixar. Sem ter mais a quem recorrer, no desespero próprio das mães, resolveu seguir o conselho de sua escrava de dentro e chamar o africano. Aproveitando a ida de seu marido à cidade, ele jamais concordaria, manda que venha.
Sabendo do que se tratava o homem foi preparado. Levou algumas ervas e um grande vidro com uma garrafada feita por ele e cujos ingredientes não revelava nem sob tortura. Em poucos minutos adentram o quarto do menino e Amundê percebe que precisa agir com presteza. Manda que Engrácia busque água quente para jogar sobre as ervas que trouxe enquanto serve uma boa colherada do remédio ao garoto. Dentro de uma bacia coloca a água pedida e vai colocando as folhagens uma a uma enquanto reza em seu dialeto. Ordena que desnudem a criança e carinhosamente a coloca dentro da bacia passando-lhe as ervas no pequeno corpo.
Nesse instante a porta se abre e surge o Sinhô Aurélio acompanhado do padre da cidade. Tereza grita e corre até o marido desculpando-se. O padre dirige-se a ela com ferocidade:
- Como entrega seu filho a um feiticeiro? - dirigindo-se ao marido - Diga adeus ao menino, após passar por essa sessão de bruxaria ele morrerá sem dúvida! Tereza corre até o filho e o cobre com um cobertor enquanto o marido ordena que o escravo seja levado imediatamente ao tronco onde o capataz aplicará o castigo merecido.
- Engrácia, acorde todos os negros para que vejam o fim que darei ao assassino de meu filho!
Todos reunidos no grande terreiro ouvem a ordem dada ao capataz:
- Chibata até a morte! E vocês - aponta todos os escravos - saibam que darei o mesmo fim a todos que ousarem chegar perto de minha família novamente. As chibatadas são dadas sem piedade, Amundê deixa escapar urros de dor entremeados com rezas o que somente aguça a maldade do capataz. Lágrimas copiosas correm pelas faces de muitos escravos. Após duas horas de intensa agonia o negro entrega sua alma e seu corpo retesa-se no arroubo final, finalmente descansará. O silêncio do momento é cortado por um grito vindo da principal janela da casa grande:
- Aurélio, pelo amor de Deus!!! - é Tereza com o filho nos braços - o menino está curado, a febre cedeu e ele está brincando!
Assim morreu Amundê, hoje trabalha num Terreiro como o velho Pai Francisco de Luanda.
Sua benção, meu pai! Permita que jamais voltemos a ver algo tão perverso em nossa história.

por Luiz Carlos Pereira


Pai João de Angola - O Inicio da Linha

O balanço do navio ainda enjoava. Não sei o que mais enojava, se era o balanço do navio ou a visão mórbida de tantos corpos de meus confrades empilhados e já sem vida. Se o mau cheiro e a falta de espaço ou ainda os grilhões que nos prendiam.
Triste sorte, quem são estes animais hominídeos que nos amarravam, batia e subjugava.
Zâmbi estaria revoltado conosco? Ou os Orixás se esqueceram de seu povo?
Pensando assim é que muitos dos nossos não puderam se aproveitar da oportunidade em viver a escravidão. Processo este que se por um lado mancha a história da humanidade, por outro, “lavou a alma” de milhares de espíritos que na carne sentiu o gosto amargo da prestação de contas com o Criador.
Todos sabem que quando os africanos foram escravizados, a Igreja logo tratou de justificar isso, tirando nossa alma, assim fizeram com nossos irmãos indígenas. Claro, é mais fácil arrancar-lhe a alma ao ter que conviver com a consciência.
Não vou aqui estender aos interesses dos colonizadores ou acusa-los. Vou tentar mostrar o lado bom desta sangrenta moeda.
Acontece que na Mãe África as coisas não iam tão bem quanto parece nos contos. Nosso povo era bem desenvolvido, no entanto totalmente dirigido pelo mito, este que ditava nossas diretrizes ou nele é que justificávamos nossos atos. Atos estes nada bons.
É certo que o homem tem necessidade de conquista e expansão. Diferentemente dos índios, nos digladiávamos em busca de riquezas e poderio, o que é pior, justificando como vontade dos Orixás, foi assim que a tribo de Ogum, formado por homens geneticamente mais avantajados pontificou este Orixá como o Senhor das Guerras e da Milícia....
Neste sentido o povo africano estava se distanciando da vida natural ou da conservação da vida, não foi diferente com nossos irmãos ocidentais que jogaram a culpa em Jesus e saíram conquistando terras pela lâmina da espada, bem, mas isso é dívida deles.
Com a escravidão, nós tivemos a oportunidade de nos reconhecer como semelhantes, uma vez que a rincha em tribos era feroz. Subjugados tivemos tempo para pensar em nossos atos, fazer brotar a humildade, simplicidade, resignação e principalmente o amor á vida. Todavia, para os companheiros que chegaram nesta conclusão entendo que cumpriu com o propósito Divino, porém não foi simples assim, muitos outros milhares caíram no ódio, vingança e toda sorte de sentimentos contrários a evolução necessária.
Perdoar o seu algoz talvez seja a chave mais certa para a iluminação!Sabedoria, eis o que simboliza a Linha dos Pretos Velhos, mas saiba leitor, esta sabedoria só existe pela vivência, por experiência, não se compra não se lê, simplesmente vive.
Humildade, sentimento este simples de entender. Se coloque como parte do meio que você vive. Ao invés de querer ser expoente, ou líder, ou coisa do tipo, procure somar, contribuir para solidificar. Veja o Brasil, a fama da construção deste país recai nos ombros dos Europeus que casa alguma teria erguido sem os braços negros do nosso povo. A meu ver mais vale o que é concreto do que é falácia.
Já no Astral o povo africano que tinha se redimido de seus débitos milenares, e já com a “alma lavada” foi convocado por Oxalá a formar a linha de trabalho espiritual em auxílio dos encarnados, surge assim a linha de Preto Velho, onde se assentou os nativos africanos, que pontificava paralelamente com as linhas de Caboclo, enquanto os índios traziam a jovialidade, determinação e pureza natural, nós contribuiríamos com o culto aos Orixás, bem organizado. Com a experiência do ancião e a mandinga que cura e afasta todo mal.
Desta forma iniciava um entrosamento perfeito e renovado no Astral que sustenta tantos encarnados nas mais variadas religiões.
Assim é o arquétipo da linha dos africanos, baseado no ancião, no simples e sábio.
Estamos à disposição daqueles que apesar do coração oprimido ainda se permite acreditar sem perder a fé e a esperança, levar graça aos desgraçados, amor aos desiludidos.
Mantemos o rótulo do velho arcado, para que assim possamos nos aproximar dos amedrontados, pois se a primeira vista não apresentamos perigo, rapidamente sentam em nosso colo.
Somos os Pais Velhos, Preto Velho, Africano, Saravá o Orixá!

Ditado por Pai João de Angola.
R. Queiroz


Pai Joaquim de Angola

São muitos os mistérios que envolvem o povo, as linhas, o universo da nossa Umbanda querida.

Grandes figuras entremeiam com a corda da humanidade, uma desta figura é o grande Preto-velho pai Manoel Joaquim de Angola, que baixa nos terreiros levando sua missão de amor e esse amor é tão grande que ninguém para tentar desvendar quem foi esta lendária figura entre os Pretos Velhos de Umbanda.
Pai Joaquim ou Iquemí foi um negro forte, guerreiro, filho prometido de uma família real africana, oriunda de angola, áfrica para reinar junto ao seu povo.
Iquemí era um príncipe majestoso, amava sua liberdade, seus amores, um legitimo filho do orixá Xangô.
Mas entre guerra de brigar pelo poder, Iquemí foi aprisionado por uma tribo inimiga que o entregaram aos mercadores brancos.
Iquemí o grande guerreiro, príncipe de sua tribo estava em desespero, preso como um animal, veio no porão de um navio aos gritos de desespero dos seus inimigos de cor.
O mercador de escravo, dono do navio aonde vinha Iquemí, soube do destaque de ter um príncipe entre os outros escravos, observou o seu porte, sua beleza, seus dentes perfeitos e seu corpo músculos, mas viu nos seus olhos que não se submeteria aos maus tratos em se tornar um escravo.
O mercador de escravos chamava-se Manoel Joaquim, nascido em Lisboa decidiu ficar com Iquemí na sua fazenda nas terras da bahia.
Assim Iquemí chegou a Bahia foi para a fazenda do mercador.
Mas Iquemí não aceitava ser escravo, o mercador se afeiçoou de Iquemí devido a sua valentia, sua força e destaque entre os negros, mal sabia que sobre a luz do espiritismo ambos eram almas afins unidos pelo destino.
Iquemí foi conquistando a amizade do senhor Manoel Joaquim, que só teve um filho que morreu cedo com apeste, gostava de Iquemí como de um filho e um dia lhe disse:
- Negro, tu não tens um nome, um nome verdadeiro, um nome onde vais ser conhecido, vou pensar como te chamar.
O mercador adoeceu seriamente, antes de morrer batiza Iquemí de Manoel Joaquim de Luanda, um pedido de Iquemí.
Sua fama correu terras, envelhecendo se tornou pai de todos.
Pai Manoel Joaquim de Luanda ( Pai Joaquim d’Angola) seu papel na escravidão foi importantíssimo, promovia a paz entre seus irmãos de cor. Bondoso, um verdadeiro cristão, Pai Joaquim recebeu seu primeiro chapéu de palha, dado por bispo da igreja local quando sua cabeça já era toda branquinha. Sofreu muito no cativeiro, mas jamais esqueceu sua grande e velha mãe África.

Luiz Roberto

Mensagem de Preto Velho

Trabalho na linha de pretos velhos com esta maravilhosa entidade.
Um certo dia, ele atendeu de uma senhora que lhe veio consultar sobre um tumor nos seios, diagnosticado por uma mamografia.

Passes daqui, trabalhos dali, enfim, uma consulta normal…vela, erva, água…
Disse o preto:
- É mizim fia… Tá feito…mas num deixa de procurá o Homi de branco, dispois vem contá pro nego…nego vai ficá no toco esperando cunce vortá…

E saiu a consulente.

Numa próxima gira, estava lá o preto no toco e chegou a sua consulente, já na segunda parte do trabalho.

- Podi entrá mi zim fia, tava le esperano….

- É meu Velho, fui no médico sim…ele disse que o tumor sumiu, vai ver foi engano, o que a mamografia mostrou foi uma sombra de um queloide, que eu já tinha de cirurgia anterior. mas vim lhe agradecer, pois sei que o Senhor me curou..
Diga, meu Pai, o que o Senhor quer de presente, quero lhe agradecer…

Em nossa casa, as entidades as vezes ganham presentes, charutos, bebidas, mas não que peçam, porque as pessoas trazem em agradecimento mesmo, como deve ser em todo lugar.

Mas naquele dia o preto pediu…

- Me traga um bolo de chocolate, mi zi fia, suncê pode faze isso…?? Mais tem qui ser na proxima gira…eu num vô tá aqui, mas fala co caboclo chefe que ele manda mi chamá….

Todos estranharam, e eu mais ainda, passei a semana pensando naquele pedido, eu que amo bolo de chocolate, pensava comigo, Meu Velho…porque um bolo, Meu Pai…Até os filhos da casa acharam estranho e houve uma brincadeira ou outra…do tipo achando que iam comer o bolo….Alguém arriscou dizer que era a comemoração pela cura da mulher… Enfim…esperei ansiosa…Afinal…confio neles.

Em verdade torci para a mulher nem aparecer com aquele bolo…
Mas ela apareceu, e sentou na primeira fila, com o tal bolo, todo confeitado de confetes coloridos.

Chegou o preto, com autorização do chefe do terreiro, que é Seu Serra Negra….

- Trouxe meu bolo, mi zim fia…
- Trouxe meu velho…

Então o preto levantou e disse que na assistencia tinha uma menina, de cor morena, que estava fazendo aniversario, 14 anos, e chamou-a.
Disse à menina:

- Mi zim fia, esse é presente que sunce pediu ao seu anjo da guarda, ele não pode vir, mandou o nego te entregar…

A criança marejou os olhos e saiu com o bolo na mão, sentar ao lado da mãe, que chorava muito na assitencia. Em 14 anos, nunca havia ganhado um bolo de chocolate….Nunca mais voltou, nunca mais vimos. E nunca esquecemos esta história.

Autor Desconhecido
Faz Caridade fio, faz caridade fio!


Assim era as fala do negro Ambrósio através do aparelho mediúnico que lhe servia de canal para fazer proseador.
Não era a primeira que aquele consulente ouvia esse conselho do Pai Velho, já havia se passados oito meses desde o primeiro dia que aquele senhor tinha adentrado ao terreiro, passando a fazer parte da assistência, sempre voltando ao negro Ambrósio para tirar suas duvidas.
Naquele dia ele estava decidido. Iria perguntar ao Velho
porque toda vez que falava com ele escutava o mesmo conselho? Será
que como espírito não estava vendo que ele já estava fazendo
sua parte?
Esperou ansioso a sua vez. Aquela noite seria especial, seria diferente das outras, aquele encontro marcaria uma nova etapa no caminhar daquele senhor.
Como sempre fazia, mais por repetição do que mesmo por convicção, se ajoelhou diante do negro Ambrósio e foi dizendo:
- Benção vô Ambrósio, hoje venho lhe pedir uma explicação para melhor entender o que o senhor me diz.
- Oxalá te abençoe meu fio! Negro Ambrósio fica feliz com sua presença e gosta de fazer proseador com todos os fios que aqui vem.
- Meu vô, como o senhor mesmo sabe já faz algum tempo que venho a essa casa e falo com o senhor. Como já lhe disse não tenho uma situação financeira ruim, ao contrário, nunca tive problemas dessa ordem o que sempre me facilitou uma vida com fartura e bem-estar
desde a infância.
- Certo meu fio, negro Ambrósio já tem cunhecimento de tudo isso que suncê falou.
- É meu vô, por essa razão gostaria de lhe perguntar porque o senhor toda vez que fala comigo me aconselha a fazer a caridade? O senhor não já sabe que faço isso todo mês entregando gêneros alimentícios aos que estão carentes? Além do que, na minha empresa mantenho uma creche para os filhos dos meus empregados para que assim possam trabalhar com mais tranqüilidade.
Por isso gostaria que me explicasse o porquê desse conselho, dentro da minha consciência cumpro com meu compromisso.
- É verdade meu fio, tudo isso que suncê falou pra negro veio, faz parte de seu compromisso e fio cumpre direitinho sua parte.
Porém fio esse compromisso faz parte de seu social. Suncê alimenta o corpo material que precisa de sustentação pra ficar de pé, pois se não for assim fio tem prejuízo, só que o fio também precisa distribuir o pão espiritual e assim fazer a caridade.
- Não entendi meu vô seja mais claro? Que caridade espiritual é essa?
- É a mesma que esse meu aparelhinho faz aqui no terreiro.
Suncê precisa assumir sua condição de médium.
Espantado, disse o senhor: como é que é vô Ambrósio o senhor está me dizendo que tenho compromisso com a mediunidade na Umbanda é isso?
- É isso sim, meu fio. Suncê tem compromisso com essa banda.
Ante as muitas verdades que ele já tinha ouvido, nunca uma afirmação estava tanto a lhe remoer a alma. Como seria possível?
Achava bonito a Umbanda, gostava do cheiro das ervas e do cachimbo dos vôs, mais daí então a ser médium era demais para ele.
Mesmo de forma acanhada buscando aparentar tranqüilidade aquele senhor disse ao vô:
- Meu vô acho que há um equívoco, pois nunca senti nada a respeito da mediunidade.
- Num sentiu porque se prende e que não quer dizer ou suncê acha que nego veio não vê o companheiro de Aruanda que lhe acompanha e que hoje está dando autorização pra fazer esse conversado? Meu fio diz que gosta do cheiro das ervas e desse terreiro
- o que é uma verdade – mas o que fio não se vê é dobrando o corpo para prestar a caridade, deixando assim que seu Pai Preto também lhe traga lições para seu caminhar. Então meu fio, enquanto suncê não entender, nego veio vai continuar repetindo o conselho: faz caridade fio, faz caridade fio! Mesmo que tenha que arrepetir isso por muitas veis, pois água mole em pedra dura fio,
tanto bate inté que fura. Olha fio! Eu tenho um compromisso moral com esse companheiro de Aruanda que te acompanha e te agaranto que não será de minha parte que não será cumprido. Pensa no que esse veio te falou e dispôs vem prosear novamente, pois o passo de veio é miudinho e devagarzinho, só tem uma coisa fio: o tempo corre e espero que suncê queira aproveitar enquanto tá desse lado de cá!
Aquele senhor se levantou da frente de negro Ambrósio sem dizer mais nenhuma palavra, seria preciso tempo para digerir tudo que ele tinha ouvido.
Oito meses se passaram depois daquela prosa, ninguém no terreiro tinha visto novamente aquele senhor na assistência.
Era 13 de maio, gira festiva de preto velho, os trabalhos tinham se iniciado. Negro Ambrósio olhava para a porteira do terreiro como se estivesse a esperar por alguém e assim cantarolava “acorda cedo meu fio, se com velho quer caminhar, olha que a estrada é longa e velho caminha devagar, é devagar, é devagarinho quem anda com preto velho nunca ficou no caminho”. Acostumados com a curimba os filhos da corrente repetiam os versos sem perceber que naquele dia a entonação estava mais dolente. Mais um filho de Zambi venceria uma etapa, mais um seria libertado.
E foi olhando para a porteira que negro Ambrósio viu aquele senhor adentrar no terreiro, com os olhos rasos d’água e de joelhos se postar assim dizendo: Vô Ambrósio se é verdade que tenho essa tal mediunidade aqui estou para aprender a fazer caridade, nesses 8 meses minha vida perdeu a alegria, relutei muito para chegar aqui novamente e não nego que fugi por vergonha se ainda houver tempo…
Aquele senhor nem chegou a ouvir a resposta do negro Ambrósio. Do seu lado já se encontrava um negro que de forma doce e amorosa assim falou: Meu fio a quanto tempo espero por esse momento, por esse reencontro. Vamos trabaiá meu fio nas bênçãos de Zambi e na fé de Oxalá!
Diante dos filhos daquela corrente, aquele homem branco, de olhos claros, quase translúcidos, alto, dava passagem nesse momento a mais um preto velho e foi curvando aquele corpo que se ouviu a voz da entidade assim dizer: Bendito e louvado sejam o nome de nosso Pai Oxalá! Saravá negro Ambrósio! Pai Joaquim das Almas se faz presente nesse Gongá!
- Saravá Pai Joaquim!
E daquele dia em diante mais um filho começava a sua caminhada. Mais um chegava a corrente da casa. Mais uma estrela passou a brilhar nos céus de Aruanda!
Saravá Preto Velho!!!
A.D.



Vovó Maria Conga

Cenas de exaustivo trabalho em plantações de cana. É nisso que Vovó Maria Conga parece estar constantemente envolvida. Gosta de doces, cocada branca em especial, mas não dá demonstrações de ter sido esta sua principal ocupação na encarnação como escrava.
Sentada em um toco de madeira no terreiro contou, certa vez, alguns fatos de sua vida em terra brasileira.
Começou dizendo que só o fato de podermos conviver com nossos filhos é uma grande dádiva. Naquele tempo as negras eram destinadas, entre outras coisas, a procriar, a gerar filhos que delas eram afastados muito cedo, até mesmo antes de serem desmamados. Outras negras alimentavam sua cria, assim como tantos outros "filhotes" foram alimentados pela Mãe Conga. Quase todas as mulheres escravas se transformavam em mães; cuidavam das crianças que chegavam à fazenda, rezando para que seus próprios filhos também encontrassem alento aonde quer que estivessem.
Os orixás africanos, desempenhavam papel fundamental nesta época. Diferentes nações africanas que antes guerreavam, foram obrigadas a se unir na defesa da raça e todos os orixás passaram a trabalhar para todo o povo negro. As mães tomavam conhecimento do destino de seus filhos através das mensagens dos orixás. Eram eles que pediam oferendas em momentos difíceis e era a eles que todos recorriam para afastar a dor.
Maria Conga teve que se utilizar de algumas "mirongas" para deixar de ser uma reprodutora, e assim, pelo fato de ainda ser uma mulher forte, restou-lhe a plantação de cana. A colheita era sempre motivo para muito trabalho e uma espécie de algazarra contagiava o lugar. Enquanto as mulheres cortavam a cana, as crianças, em total rebuliço, arrumavam os fardos para que os homens os carregassem até o local indicado pelo feitor. Foi numa dessas ocasiões que Maria Conga soube que um dos seus filhos, afastado dela quando já sabia andar e falar, era homem forte, trabalhando numa fazenda próxima.
Seu coração transbordou de alegria e nada poderia dissuadi-la da idéia de revê-lo. Passou então a escapar da fazenda, correndo de sol a sol, para admirar a beleza daquele forte negro. Nas primeiras vezes não teve meios de falar com ele, mas os orixás ouviram suas súplicas e não tardou para que os dois pudessem se abraçar e derramar as lágrimas por tanto tempo contidas. Parecia a ela que eles nunca tinham se afastado, pois o amor os mantivera unidos por todo o tempo.
Certa tarde, quase chegando na senzala, a negra foi descoberta. Apanhou bastante, mas não deixou de escapar novamente para reencontrar seu filho. Mais uma vez os brancos a pegaram na fuga, e como ela ainda insistisse uma terceira vez resolveram encerrar a questão: queimaram sua perna direita, um pouco acima da canela, para que ela não mais pudesse correr.
Impossibilitada de ver o filho, com menor capacidade de trabalho, a Vó Maria Conga passou a cuidar das crianças negras e de seus doentes. Seu coração se encheu de tristeza ao saber que haviam matado seu filho quando tentava fugir para vê-la.Sua vida mudou. De alegre e tagarela passou a ser muito séria, cuidando do que falava até mesmo com os outros negros. Para as crianças contava histórias de reis negros em terras negras, onde não havia outro senhor. Sábia, experiente e calada, Vovó Maria Conga desencarnou.
Com lágrimas na alma ela acabou seu conto. Disse que só entendeu a medida do amor após a sua morte. Seu filho a esperava sorrindo, guardião que fora da mãe o tempo todo em que aguardava seu retorno ao mundo dos espíritos.

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